O Cubinho de Açúcar e o Doce da Vida

Mesmo nublado, o dia delineou a linha imaginária do horizonte na visão de longo alcance de quem mediu a distância necessária para superar as lembranças dos maus tratos da segunda guerra. Ainda mais quando se percebe o quanto foi missão quase impossível acreditar que tudo acabaria bem e que iria sobreviver ao holocausto.

entrada de Auschwitz - Birkenau, o principal campo de extermínio nazista, lugar onde morreram mais de um milhão de vítimas do Holocausto.
entrada de Auschwitz - Birkenau, o principal campo de extermínio nazista, lugar onde morreram mais de um milhão de vítimas do Holocausto.

Na linha imaginária do horizonte, Peter Ungar relembra de quantas vezes quase morreu durante a ocupação nazista em Budapest. Hoje aos 78 anos, casado com Linda, pai de Paulo e Ana e Clara e avô de Sophia, Vivian, Andrew e a recém-chegada Alice, ele é taxativo ao revelar o quanto a intolerância e o ódio são venenos letais para a nossa humanidade. Afinal, foi uma odisseia permanecer de pé diante de tudo que vivenciou durante intermináveis noites longe dos seus pais e perto, muito perto da morte.

O pesadelo começou no dia 19 de março de 1944. A máquina da “solução final” estava a todo vapor e impiedosamente assassinou noventa por cento dos judeus húngaros do interior. Os da capital contaram com a falsa proteção temporária do regente Miklós Horthy, que em outubro do mesmo ano foi forçado a renunciar sendo preso e levado para a Alemanha até o fim da guerra quando liberado. “Eu vi os soldados desfilando na avenida sem olhar para os lados. Foi assustador!”. Recorda Peter. O próximo passo foi a mudança forçada de endereço para um bairro com prédios degradados e “portas estreladas” para pejorativamente demarcar a vizinhança judaica. Lá ele viu seu pai Lajos ser levado para o campo de trabalhos forçados na mina de cobre na Sérvia e em seguida a sua mãe Klara para o hipódromo e de lá diretamente para o campo de concentração Ravensbruck para mulheres com algum tipo de qualificação. Peter foi resgatado pela tia Elvira, mas não por muito tempo, porque no dia seguinte foi a vez dela ser também deportada. O avô Carlos Kertész foi quem salvou o menino.

Graças ao seu enteado negociante de influência, o velho Kertész conseguiu dar ao neto dias menos sombrios lá na Rua Garay Utca número 20. Mas não por muito tempo. No rigoroso inverno do dia 3 de janeiro de 1945, os nazistas húngaros invadiram os apartamentos e levaram centenas de pessoas para a sede do Partido Nacional Socialista para o que chamavam de uma entrevista, quando na verdade era a triagem para o fuzilamento. O menino sentiu muito frio, fome e desamparo por mais uma vez perder seu senso de referência. Outra separação o ameaçava e desta vez podia ser para sempre quando quase foi apartado dos seus familiares. Mas o avô clementemente intercedeu pedindo para que o menino ficasse com ele, a mulher, o enteado e a sogra.

Milagrosamente o pedido foi aceito. Enquanto narrava, veio à lembrança o sabor do cubinho de açúcar ofertado por uma mulher que assim como apareceu sumiu naquela sala apinhada de gente. Ela jamais saberá o quanto devolveu ao Peter o gosto doce pela vida sobrepondo àquele aterrorizante instante. O que se sabe é que, os que ficaram na sede do partido não viram o sol nascer. Naquela noite, todos foram fuzilados e jogados descalços no Rio Danúbio. Os sapatos ficaram em fileiras rastreando a destruição em massa e depois, reutilizados na indústria da guerra. Mesmo exausto e amedrontado Peter foi obrigado pelos nazistas a marchar. A sogra do avô não teve a mesma sorte. Ao escorregar no chão, tomou uma coronhada na cabeça, não resistiu e morreu ao lado do menino.

Fim da guerra. Russos por toda parte. Libertação dos judeus nos campos e o retorno para a Rua Garay Utca numero 20. Em frangalhos, o pai chegou primeiro e meses depois a mãe. Peter não consegue rememorar este reencontro. Lembra que teve que passar um tempo no orfanato judaico até os pais se restabelecerem. A Hungria seguiu o longo curso da sua reconstrução. Peter cresceu, se formou em Engenharia Elétrica e viu o seu país virar socialista. Jovem do pós-guerra ansioso por liberdade fugiu a pé e atravessou a fronteira da Áustria. Ensinou o caminho aos seus pais e juntos decidiram migrar para o Brasil no dia 2 de janeiro de 1957. Chegaram a São Salvador da Bahia. Sobreviveram, prosperaram.

Peter Ungar continua escolhendo a vida com uma lucidez exemplar. O sorriso é discreto e o olhar profundo de quem sabe descortinar a linha imaginária do horizonte em dias nublados. O humor, judaicamente apurado traz o toque doce daquele cubinho de açúcar degustado na infância. E a reposta que dá quando pensa em tudo que passou é na verdade cheia de questionamentos: “Temos que aprender a perdoar e assim a nos libertar. Mas esquecer, como podemos?”.

Hoje, 27 de janeiro de 2016, o mundo lembra as vítimas do holocausto.

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