Resolvi lembrar de uma história real para ilustrar os ensinamentos da professora Dona Jó e do nosso professor Paulo Freire. Os dois são contemporâneos e se encontram entre as estrelas mais brilhantes do universo. Quando a noite chegar, é só olhar o vasto céu, e contemplar a dupla.
Educação é o maior legado que ganhamos quando temos a sorte de encontrar criaturas essenciais para a humanidade da nossa caminhada: professores e professoras. Gratidão!
Vamos à história?
Lá estava o pássaro e lá estava o menino. O estilingue certeiro dele em direção àquela vida com a liberdade por um fio. O menino mirava o seu alvo sem pressa, que se aquietava no ninho sem malícia. O local da emboscada era um terreno baldio. E próximo havia uma janela. E muito atento havia um olhar que mirava o menino e o pássaro.
O menino preparou o estilingue e quando estava prestes a disparar a pedrinha em direção ao ninho, se deparou com um grito:
– O que é isso menino!
Foi o suficiente para ele perder a mira e para a ave ganhar os céus. A voz da liberdade gritou:
– Para dentro de casa já!
O menino nem titubeou. Se apressou e o estilingue a entregou. A voz que antes bradava na janela, se silenciou.
O tempo passou, o menino cresceu e em pai se transformou. Mais uma vez lá estava a liberdade por um fio. Quando o pai chegou até a janela avistou seu filho fazendo um bichano de rua de gato e sapato. E ao pensar em jogar o animal para o alto, a voz do pai repetiu o brado que um dia ouvia da sua mãe:
– O que é isso menino?
Foi o suficiente para o filho desistir do intento e para o gato ter de volta a liberdade das ruas.
E de quem era aquela voz que ecoava lá do túnel do tempo da memória?
A voz era de Jorgelita, conhecida simplesmente como Dona Jó. Aquariana legítima, casada com Alberto Leal Vita, presidente do Sindicato dos Jornalistas e membro do Partido Comunista nos idos dos anos 50 e 60. Juntos tiveram uma prole de cinco filhos: três meninos e duas meninas. Mulher de pulso forte e voz altiva. Nas reuniões na sala de estar que o marido tinha com os companheiros, colocava as crianças no quarto e ficava lá para não atrapalhar. Como boa professora que era, ensinava cada uma delas a entender o sinal de alerta:
– Se alguém entrar porta adentro, é só me obedecer. Se eu disser a palavra verde, todo mundo sabe o que fazer.
Esse era o código da esperança para garantir a segurança da família em tempos de prenúncio da ditadura que veio a se confirmar em 1964, com o golpe militar. Mas um dia bateram na porta e Dona Jó teve a desesperadora notícia: seu marido havia sido preso. Mas por que? Por ser jornalista e comunista? E os direitos humanos? E o respeito à imprensa? No Brasil, a liberdade vivia por um fio e uma vida desaparecia de um dia para outro sem quê nem pra quê.
Dona Jó respirou fundo, aguentou firme a dor do desamparo, deixou as crianças na casa da mãe, preparou uma marmita, a escondeu entre as roupas e partiu para o quartel onde o marido detento se encontrava. Conseguiu burlar a segurança e, na hora da visita, além do abraço forte e do tradicional bife acebolado, o marido respirou o ar encorajador da sua destemida mulher.
O jornalista Alberto Vita teve a sua liberdade por um fio por pensar diferente e por isso foi visto como uma ameaça à pátria mãe nada gentil. Felizmente, o soltaram, mas depois de um tempo o seu corpo adoeceu e Vita partiu. Dona Jó viúva ficou e, mesmo jovem, não mais se casou. Até teve um pretendente, que lhe ofereceu uma proposta indecente de pedir a sua mão com a condição de colocar seus cinco filhos no internato escolar. “O que é isso companheiro?”
Dona Jó fez do luto a sua luta honrando cada dia de labuta. Fez da altivez o seu exemplo e, da liberdade, sua condição. Como professora, escreveu “A Cartilha de Alice” (de alfabetização) e o livro “Vida de Criança”, juntamente com a escritora Dineia Machado. Aos 95 anos, resolveu que era hora de se despedir. A vida lembrou dela na janela bradando:
“- O que é isso menino?”
Dona Jó continua sendo ouvida na memória dos frutos que deram frutos. Sua cartilha será lida como uma reza de geração em geração. E lembra do menino que cresceu, virou pai e teve um filho?
O filho respeita os animais sem distinção. O pai é o maior apreciador de passarinhos livres e, ao invés do estilingue, tem um relógio biológico que o faz despertar cedo para alimentar os assanhaços no quintal. Vita é o sobrenome da família que em italiano significa vida. A Dona Jó deixou como legado o amor pela educação e o respeito à Natureza e aos direitos fundamentais. Hora de aprender com a professora a ficar de olho na janela. É responsabilidade de todos nós salvaguardar a democracia que deve chegar ao mar como é o destino de todo rio. A liberdade não pode nunca mais ficar por um fio.
A gente merece a vida inteira!
Jacqueline Moreno
É tradutora, intérprete simultânea, jornalista e professora.
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